
Fui ao Teatro. Ouvi estas palavras. Fui o intérprete destas palavras. Escrevi estas palavras.
Peter Handke, em Introspecção
Quando chegar ao fim, hei de voltar ao princípio. E o princípio é este texto. Começo agora um ciclo que durará três anos. Que será, não tenho dúvidas, um dos mais significativos da minha vida; e espero que o seja para vocês também. Durante os próximos três anos seremos cúmplices na construção de um Serviço Público de Cultura de qualidade em Torres Vedras, e a partir de Torres Vedras. Procuraremos perceber como pode este serviço público contribuir para uma sociedade participativa, com as artes performativas a propor respostas para os diferentes desafios que temos em mãos enquanto comunidade.
Durante os próximos três anos, tenho a feliz tarefa de colaborar para que este edifício seja cada vez mais comunitário, uma assembleia, um ponto de encontro, uma praça - ou um largo como aqueles que encontramos pela cidade. Também aqui nos juntamos para ouvir música, discutir, experimentar a novidade, criar relações de afeto e cumplicidade, e jogar. Sim, jogar. “To play”, diriam os ingleses, e talvez assim pareça mais enquadrado, uma vez que é assim que se referem ao ato de representar. Espero que o Teatro-Cine seja, para todas as pessoas que vivem neste território, o lugar onde a sociedade se reconhece, se cruza e se ultrapassa. A arte contribui para a democracia cultural de um lugar quando é um mecanismo revelador, quando o seu trabalho empodera quem por ele passa. Quando o percurso de um espectador se aproxima da citação que faço da peça “Introspecção” de Peter Handke: fui, ouvi, interpretei, escrevi.
O teatro pode ser uma ponte, um veículo, um caminho. Um lugar a que se chega não para ficar, mas por onde se passa para alcançar outras paragens. No teatro podemos cruzar-nos com o contraditório, expor-nos a outras formas de encarar o mundo e às ideias que estruturam a nossa vida. O teatro pode ser um lugar de passagem, um trampolim, e um teatro de cidade pode ser a porta para o resto do mundo. Um espaço onde podemos celebrar o que entendemos ser a nossa identidade e expandi-la com a novidade que a enriquece e complexifica. Por isso, o teatro, podendo ser isto tudo, talvez seja um lugar de fronteira: entre o que sabemos e o que ainda temos por descobrir; entre o que nos comove e o que nos inquieta; entre o eu e o outro. E a programação que vos proporei deve responder a um direito e uma liberdade: o direito da fruição artística e a liberdade de criação artística.
Ao longo dos próximos três anos, o Teatro-Cine de Torres Vedras terá como objetivo pensar o mundo através da arte, cruzando a dimensão artística com outros vetores das preocupações sociais contemporâneas como a acessibilidade, a sustentabilidade ecológica, a habitação, a saúde e o emprego. Vamos propor que as artes performativas e a expressão artística sejam uma oportunidade para gerar discurso e discussão consequente sobre estes sectores. Queremos que este seja um polo de cultura vivo e desafiante, capaz de responder às intuições coletivas.
Este texto não é uma lista de promessas, mas uma carta de intenções. A meio deste ciclo, celebramos os 50 anos do 25 de abril de 1974. Por isso mesmo, propus-me a encarar a tarefa da direção artística do Teatro-Cine de Torres Vedras guiado por três pilares, que me conduzem ao longo dos anos: começaremos por nos deixar guiar pela palavra Resistência, em 2023/24; seguimos com a Revolução em 2024/25; e lançamo-nos para o futuro com a Construção em 2025/26. Pensar como e porque acontece uma revolução, o que a antecede e que forma tem o dia seguinte. Principalmente num momento em que se torna cada vez mais evidente a necessidade de uma revolução cultural, que nos permita viver em maior sintonia com a nossa escala e o ritmo da natureza.
Perguntarão "E quem é este que nos escreve?" Chamo-me Guilherme Gomes, nasci em Viseu, e vivi grande parte da minha vida em Lisboa. Formei-me em Teatro, e trabalhei como ator, encenador, dramaturgo, e diretor artístico em diferentes projetos. Chego a este lugar através de um concurso público, selecionado, entre um conjunto de outros candidatos, pela proposta que fiz (e de onde recuperei algumas ideias para este primeiro texto). Tenho procurado sempre contribuir para o melhor serviço público de cultura possível, através da criação artística, da reflexão e do reconhecimento do sector. Tenho agora a oportunidade de o fazer em Torres Vedras, em diálogo com o executivo municipal, e na companhia da pequena equipa de gigantes que cultivam este teatro há tanto tempo. A quem se juntam tantas vezes outros colaboradores e um conjunto plural, eclético e generoso de jovens que colaboram na frente de casa. Entro num projeto em movimento, atento ao legado deste teatro, e com vontade de introduzir novos caminhos.
Enquanto vos escrevo, o teatro é habitado por associações locais para apresentações de projetos à comunidade. Não podia ser uma melhor altura. De facto, o teatro é um exercício que se faz em companhia. Uma companhia composta por quem colabora para a construção do que se faz em palco, e de quem se senta na plateia. Duas importantes formas de participação na vida cultural. É por reconhecer essa importância que gostaria de fazer destes textos uma correspondência. Convido-vos a responder a estas palavras escrevendo para o endereço teatro.cine@cm-tvedras.pt. Tentarei dar resposta. Que estes textos sejam sempre princípios de uma reflexão que não se cumpre com o que escrevo, mas com a conversa que se segue. Como dizia uma querida amiga: sozinhos somos sempre insuficientes. Aqui está o princípio.
Guilherme Gomes
Diretor Artístico do Teatro-Cine de Torres Vedras